Juliano Zaiden Benvindo, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Coordenador do Centro de Estudos Constitucionais Comparados da Universidade de Brasília (CECC/UnB) e Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

A afirmação de que os golpes, hoje em dia, ocorrem, principalmente, dentro dos quadros institucionais, e não por um ato externo de força, tornou-se constante na política e no constitucionalismo comparado. Livros e artigos sobre crises, decadências ou mortes da democracia com tal perspectiva viraram best-sellers e são amplamente citados na área [1]. Mais especificamente no direito constitucional, conceitos como “constitucionalismo abusivo” [2], “catimba constitucional” [3] e “erosão constitucional” [4], apenas para citar alguns, também têm sido amplamente utilizados. Não são mais aqueles golpes clássicos em que tanques ou aviões andam em direção a palácios presidenciais e os bombardeiam, enquanto juntas militares assumem o controle do governo. É mais a subversão gradual de ferramentas democráticas e constitucionais em benefício de pretensos autocratas, até que não haja mais um caminho fácil de volta. Mas e os “golpes híbridos”, conceito que Sergio Abranches, um dos grandes cientistas políticos brasileiros, cunhou recentemente para retratar a estratégia de Bolsonaro? O Brasil está passando por um tipo singular de golpe que mistura táticas antiquadas e modernas para destruir a democracia? Certamente, ele está se movendo nessa direção. Isso não significa, no entanto, que ele terá sucesso. Na verdade, “golpes híbridos” podem, paradoxalmente, ser menos eficientes para tal propósito.

“Golpe híbrido” significa que as estratégias para minar a democracia por dentro e por meio de um ato externo de força ocorrem simultaneamente, em um processo de reforço mútuo que, no final, pode trazer o pior dos mundos. Neste caso, aspirantes a autocratas enfrentam alguma resistência institucional ao seu projeto: a cooptação de instituições e indivíduos ocorre, mas não é suficiente por si só; uma coalizão no Congresso é formada, mas não é sólida e nem mesmo majoritária para a aprovação de algumas propostas legislativas, muito menos de emendas constitucionais; court-packing ou outras formas de ataques aos tribunais estão no radar, mas o grau de força e autonomia judicial joga contra essas investidas. Por outro lado, o controle civil sobre os militares pode ser menos real do que se imaginava e, portanto, há uma margem para adotar os militares como uma força ameaçadora com que Comandante-em-Chefe pode contar, caso seus planos na outra frente não estejam funcionando. Uma estratégia alimenta a outra, assim a resistência das instituições é contra-atacada por ameaças de uma suposta força advinda desse apoio dos militares. A política, pouco a pouco, é dominada por um crescente medo de escalada da crise e, cada vez mais, há uma “normalização” de conflitos em níveis que anteriormente eram inaceitáveis. No fim, não há um caminho fácil de volta, não porque o autocrata em potencial tenha sido bem-sucedido em subverter o quadro institucional em seu benefício por meio das ferramentas constitucionais, mas porque, para fazê-lo, ele ou ela precisou recorrer a ameaças de um golpe clássico apoiado pelos militares. As instituições, então, aceitam cada vez mais uma maior margem de negociação com o executivo com o objetivo de “pacificar” os conflitos. Quando elas percebem que tal normalização passou do ponto, já é tarde demais.

Golpes híbridos funcionam, portanto, como o equivalente institucional de mudanças na chamada “janela de Overton”, que foi amplamente discutida, por exemplo, nos Estados Unidos durante o governo Trump. A “janela de Overton” é um conceito elaborado pelo analista político Joseph Overton que, em poucas palavras, significa que ideias que não estão dentro dos limites da tal janela são comumente rejeitadas no debate público. É um conceito dinâmico, pois o que era, em princípio, “politicamente impensável pode se tornar dominante”. Por exemplo, Kelly M. Greenhill escreveu para a revista Foreign Affairs o artigo “Como Trump Manipula o Debate sobre a Migração: O Uso e Abuso de Informações Extra-Factuais”, em que discute a estratégia de Trump para “[mover] a janela de Overton, de tal forma que políticas que eram recentemente impensáveis – e até risíveis – agora sejam dominantes”. Progressivamente, essa janela se expande para outros assuntos anteriormente impensáveis em um ciclo vicioso. Pedro Doria, jornalista brasileiro, associou recentemente tal movimento à tentativa de Bolsonaro e seus acólitos de “normalizar” o que antes era inaceitável pela população. Exemplos são o argumento de que a ditadura civil-militar brasileira de 64 não era uma ditadura, mas um “regime forte” ou que tais “visões” dissidentes são apenas uma questão de “semântica”. Mais grave ainda, tal mudança pode abarcar o argumento de que um golpe contra as instituições democráticas não é um golpe, mas um contragolpe ao sistema que não deixa Bolsonaro governar. De pouco em pouco, a “janela de Overton” expande seu alcance até a própria ideia de que um ato de força é aceitável – e a rede de fake news e desinformação ajuda a alcançar tal objetivo.

Sergio Abranches escreveu “ O Golpe Híbrido de Bolsonaro” com a alarmante mensagem de que “há um golpe em curso no país”, cujos sinais estão por toda parte. Ele sustenta que, “para executar seu projeto a contento, Bolsonaro precisa de um recurso extra-parlamentar que, inclusive, lhe permita domesticar o parlamento e, a partir deste, também enquadrar o judiciário”. A paisagem é realmente bastante sinistra. Embora algumas controvérsias possam surgir acerca do apoio das Forças Armadas a um golpe – a maioria dos analistas nega essa hipótese -, não há dúvidas de que Bolsonaro tem apoio significativo entre os militares e que eles obtiveram benefícios consideráveis em seu governo. Se não forem os militares, forças de segurança e milícias podem ser usadas para esse objetivo. Aliás, como diz Sergio Abranches, “o modelo mental que dirige Bolsonaro é o do golpe clássico”. O Brasil estaria, portanto, caminhando na direção oposta aos casos atuais de crises democráticas. É tão chocante que o recente livro Crises da Democracia, de Adam Przeworski, parece não se aplicar tão bem ao caso brasileiro, pelo menos não no que diz respeito à “questão militar”. Przeworski diz, enfaticamente, que, “a diferença final, porém não menos importante, entre o passado e o presente, que é animadora, é que os militares praticamente desapareceram da cena política” e que “surpreendentemente [os militares] não são mais atores políticos, nem mesmo na América Latina, tendo também quase desaparecido das páginas da ciência política.” [5] Esse foi o caso do Brasil há apenas alguns anos. Porém, não o é mais, para espanto de analistas brasileiros e estrangeiros.

Este não é um golpe clássico, todavia, e, sim, a própria ameaça de um ato de força sendo usado como uma tática de persuasão para avançar com o projeto de minar as instituições democráticas por dentro. Ao usar usar apenas o próprio quadro legal e institucional, Bolsonaro não tem tido muito sucesso – pelo menos não no ritmo e amplitude que precisa até as próximas eleições presidenciais de outubro de 2022. O presidencialismo de coalizão e a alta fragmentação partidária no Brasil exigem que presidentes façam política e negociem com vários segmentos do âmbito político, enquanto o judiciário brasileiro apresenta um dos mais altos níveis de autonomia e força da América Latina [6]. Bolsonaro tem tido algumas dificuldades para avançar sua agenda mais autoritária no Congresso e a reação do Judiciário – particularmente do STF e do Tribunal Superior Eleitoral – tem sido consistente. Ele tem se saído bem em cooptar alguns atores e instituições-chave que deveriam fiscalizar seu governo, particularmente o Presidente da Câmara dos Deputados – que tem o poder de aceitar uma das várias propostas de impeachment em sua mesa – e o Procurador-Geral da República – que tem a iniciativa de processar o Presidente. Isso não significa, no entanto, que ele não esteja encurralado e é por isso que suas ameaças e ataques contra o Congresso e o Judiciário têm se intensificado, até mesmo apelando para um golpe clássico como uma constante ameaça estratégica de último recurso.

É um cenário perturbador, especialmente para uma democracia tão grande e, há até pouco tempo, estável e em aprimoramento como a do Brasil, cujo controle civil sobre os militares parecia até recentemente quase indiscutível. Uma série de eventos mostrou que tal premissa não parece mais se aplicar ao cenário atual. O mais chocante aconteceu no dia 10 de agosto, quando tanques desfilaram em frente à Praça dos Três Poderes. O suposto motivo de tal desfile foi simplesmente o de levar ao presidente Jair Bolsonaro um convite para um próximo treinamento da Marinha que ocorreria alguns dias depois em Formosa, uma cidade localizada nos arredores da capital. Tal exercício militar acontece todos os anos, mas o desfile em frente à Praça dos Três Poderes foi totalmente inédito. A mensagem não poderia ser interpretada de outra forma: o objetivo de Bolsonaro era intimidar o Congresso, quando ele estava prestes a votar uma proposta de emenda constitucional que mudaria radicalmente o moderno e bem conceituado sistema eleitoral de votação eletrônica do Brasil, adotando, em vez disso, o problemático voto impresso. No fim, não foi aprovada– a reação de vários segmentos da sociedade e, especialmente, dos Ministros do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal foi incisiva. De qualquer forma, foi grotesco e, possivelmente, sua melhor caracterização foi o artigo “Desfile militar da ‘República das Bananas’ de Bolsonaro condenado por críticos”, escrito por Tom Philips para o The Guardian.

Se tal desfile retrata visualmente o que significa um “golpe híbrido”, é sintomático que, ao invés de mostrar força, tenha revelado a flagrante fraqueza de Bolsonaro e o ridículo das Forças Armadas em acentuada desmoralização. Nenhum parlamentar levou a sério e tanto o governo quanto os militares foram alvo de deboche público – os memes daqueles tanques expelindo fumaça preta viralizaram na internet. Este é um dos efeitos colaterais dos “golpes híbridos”: eles são adotados como um trade-offentre força política e militar quando nenhum dos dois é suficiente. Quando os aspirantes a autocratas não têm o primeiro, eles pressionam pelo último, o que também não têm. Torna-se tão grotesco que a exposição de força tende a mostrar ainda mais fraqueza, o que proporciona uma reação institucional ainda mais nítida. Possivelmente é sinal de nossos tempos – e isso talvez traga de volta as palavras de Przeworski para serem parcialmente redimidas. Os militares não “desapareceram da cena política” [7], mas não são tão ameaçadores quanto antes. Viver sob a democracia por algumas décadas importa. A sociedade pode até aceitar que os militares participem do governo. Isso não significa, todavia, que irá apoiá-los quando isso implicar ataques a democracia com atos demonstrativos de força.

Ainda assim, Bolsonaro sempre avança com sua estratégia conflituosa. Não satisfeito que sua proposta de emenda constitucional não tenha sido aprovada no Congresso, ele intensificou seus ataques ao Supremo Tribunal Federal e, particularmente, a dois ministros – Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso -, já que ambos confrontaram diretamente seus impulsos mais autoritários. Bolsonaro apresentou um pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes no Senado. Moraes preside uma investigação sobre fake news e ataques a instituições democráticas que afetam diretamente a estratégia eleitoral de Bolsonaro. Ele também prometeu que apresentará outro pedido contra Luís Roberto Barroso, que trabalhou intensamente para defender o respeitado sistema de votação eletrônica do Brasil. O Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco recusou esse pedido em menos de uma semana após apresentado, mas o dado talvez mais importante seja que o próprio Bolsonaro o tenha assinado. O Advogado-Geral da União, que normalmente representa o Presidente, aparentemente se recusou a fazê-lo.

Todos esses desdobramentos devem ser, naturalmente, vistos como preocupantes, alarmantes e ameaçadores. Análises políticas estão naturalmente surgindo em âmbito nacional e internacional, perplexas com o ritmo e a gravidade de tais eventos. Deve-se notar, no entanto, que essas análises podem cair na zona cinzenta em que, dependendo de como esses eventos são retratados, acabam promovendo o ciclo de persuasão auto-reforçante que é estrategicamente útil para “golpes híbridos”, expandindo assim a “janela de Overton”. A necessidade de mostrar força em tais eventos e atos, catalisada por um conjunto de blefes e intimidações, faz parte do jogo. Os pedidos de impeachment são um exemplo claro, pois Bolsonaro certamente sabia que não seriam atendidos. Apesar disso, eles foram reproduzidos constantemente pela mídia e até mesmo por comentaristas políticos, que reforçam assim o viés analítico que é benéfico para tais táticas.

O perigo está no ar, mas, em vez disso, devemos olhar mais diretamente para o que provavelmente definirá o futuro do Brasil. De acordo com as últimas pesquisas, Bolsonaro perderá para qualquer candidato em um segundo turno – para alguns, com uma grande diferença – nas próximas eleições presidenciais e há uma chance de que ele perca para o ex-presidente Lula logo no primeiro. Seu índice de rejeição disparou e agora está acima de 61%. A economia está recuando e a inflação está novamente no radar. Cada vez mais, Bolsonaro vem perdendo apoio do mercado financeiro e dos setores produtivos, o que pode ser um golpe fatal para suas chances eleitorais. Os militares também não estão imunes: eles vêem sua popularidade cair à medida que têm sido, cada vez mais, associados ao governo e aos graves casos de má gestão e corrupção.

A verdade é que, independentemente do tipo de golpe – seja clássico, furtivo ou híbrido –, alguns requisitos objetivos, especialmente o apoio de setores-chave da sociedade, são necessários para que ele tenha sucesso. Bolsonaro não tem esse apoio. Além disso, o desenho institucional, ainda que de alguma maneira falho, é importante. O presidencialismo de coalizão brasileiro, com sua alta fragmentação partidária, tem muitas disfuncionalidades, mas tem servido como um escudo contra o autoritarismo, mesmo que imperfeitamente; uma Suprema Corte forte tem, da mesma forma, se movido cada vez mais para adotar diferentes ferramentas de proteção da democracia; e o federalismo tem desempenhado um papel importante ao aumentar a competição política e estabelecer alguma coordenação em favor do regime democrático. Finalmente, a sociedade civil organizada também tem se mobilizado rapidamente contra o governo em protestos que estão se tornando cada vez mais frequentes.

O Brasil e o mundo deveriam se alarmar com a sequência de eventos que estão ocorrendo e que, possivelmente, aumentarão em intensidade até que Bolsonaro, de fato, deixe o cargo em janeiro de 2023. Neste momento, ele opera em “modo desespero” e ainda possui um certo apoio na sociedade, principalmente entre as forças de segurança, incluindo o exército, a polícia e as milícias. O próximo evento, destinado a mostrar a sua força, está programado para 7 de setembro – dia da Independência do Brasil -, e, por conta disso, Bolsonaro, membros de seu governo e das forças de segurança têm incitado a sociedade em geral a se revoltar contra as instituições democráticas do país. Como democratas, devemos denunciar e combater essa sequência de eventos totalmente inaceitáveis. Porém, como analistas políticos, não devemos cair no erro de jogar o jogo de Bolsonaro, que pretende demonstrar força onde praticamente não a tem. Afinal, o viés analítico certamente é acentuado em momentos de estresse político. Os próximos meses serão feios e caóticos, mas os atuais sinais empíricos levam à conclusão que não há “golpe híbrido” que possa destruir a democracia brasileira.

  

* O artigo foi originalmente publicado em inglês no International Journal of Constitutional Law Blog (I-CONnect) com o título “A ‘Hybrid Coup’ in Brazil? Bolsonaro in Desperate Mode”. O texto foi traduzido para o português por Júlio Mello, Giulia Matos, e Antonio Soares de S. Melo e revisado pelo autor.

 

[1] Vide S. Levitsky and D. Ziblatt, How Democracies Die (Crown 2018) ; Y. Mounk, The People vs. Democracy: Why Our Freedom is in Danger and How to Save It (Harvard University Press 2018) ; T. Ginsburg and A. Z. Huq, How to Save a Constitutional Democracy (University of Chicago Press 2018) ; M. A. Graber, S. Levinson, and M. Tushnet, Constitutional Democracy in Crisis? (Oxford University Press 2018) ; Tom Gerald Daly, ‘Understanding Multi-directional Democratic Decay: Lessons from the Rise of Bolsonaro in Brazil’ (2020) 14 Law & Ethics of Human Rights 199, 199-226.

[2]  David Landau, ‘Abusive Constitutionalism’ (2013) 47 U.C.D. L. Rev. 189, 189-260

[3] Mark Tushnet, ‘Constitutional Hardball’ (2003) 37 The John Marshall L. Rev. 523, 523. A tradução para de “constitutional handball para “catimba constitucional” foi bem trabalhada por Rubens Glezer em seu livro Catimba Constitucional: O STF, do Antijogo à Crise Constitucional (Arraes Editores, 2021).

[4] E. P. Meyer, Constitutional Erosion in Brazil: Progresses and Failures of a Constitutional Project (Hart 2021)

[5] E. P. Meyer, Constitutional Erosion in Brazil: Progresses and Failures of a Constitutional Project (Hart 2021)

[6] Vide Aníbal Pérez-Liñan and Andrea Castagnola, ‘Presidential Control of High Courts in Latin America: A Long-Term View (1904-2006)’ (2009) 1 Journal of Politis in Latin America 87, 87-114; G. Helmke and J. Rios-Figueroa, ‘Introduction’ in G. Helmke and J. Rios-Figueroa (ed.), Courts in Latin America (Cambridge University Press 2011) 1-26; Daniel M Brinks and Abby Blass, ‘Rethinking Judicial Empowerment: The New Foundations of Constitutional Justice’ (2017) 15 International Journal of Constitutional Law 296, 296-331

[7] Przeworski, n. 5 supra